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É a história de uma faísca que se torna num incêndio. A 12 de Agosto de 2016, Jean-Prince Mpandi, o 6º «Kamuina Nsapu» de nome, chefe tradicional dos Bajila Kasanga, foi morto num ataque à sua casa, na província do Cassai-Central. Todos os olhares se viraram então para um outro habitante do Cassai, Étienne Tshisekedi, o opositor histórico está de regresso ao país depois de ter estado exilado dois anos. A faltarem alguns meses do fim para o mandato de Joseph Kabila, um dentre eles escolhe a insurreição, o outro o diálogo. Dez meses depois, contabilizam-se centenas de mortos, talvez milhares, mas outras milhares de crianças são recrutadas, mais de um milhão de deslocados e pelo menos quarenta e duas valas comuns foram encontradas.

Tal como Étienne Tshisekedi, Jean-Prince Mpandi é um filho do Cassai-Central, uma das províncias mais pobres da região do Grande-Cassai . Até aí, um refúgio de paz: imponentes paróquias de vinte em vinte quilómetros e vilas circundantes com o nome dos chefes que as administram. Poucas estradas e pontes foram construídas no tempo dos missionários e quase nada após a sua partida. A linha de caminhos-de-ferro, que ainda funciona, anda às curvas entre rios e campos.

Na sua terra natal de Cassai, o velho opositor Tshisekedi desertou-o desde há muito tempo e leva a cabo o seu combate em Kinshasa. Mas no Grande Cassai há apenas três poderes que contam: o Estado, que é odiado por muitos, a Igreja Católica, que perde terreno, e as chefias tradicionais. Desde 2015, uma nova lei referente ao estatuto dos chefes tradicionais entrou em vigor. Ela prevê a remuneração dos chefes e a publicação de um decreto de reconhecimento do estatuto de cada chefe. O regime de Joseph Kabila é acusado de ter utilizado esta nova lei para fins políticos para assegurar o seu controlo nesta terra de oposição. Desde a colonização, nenhum regime – nem o de Mobutu, nem o de Laurent-Désiré Kabila – tinha tocado no poder tradicional no espaço do Grande-Cassai. Diz-se que o presidente Mobutu se dirigia ele mesmo aos chefes tradicionais mais importantes, à corte real, para os saudar.

O sistema Kamuina Nsapu

Desde então, sucederam-se várias crises económicas. A última, a que divide hoje a RDC, lembra aos Congoleses – talvez sem razão – o início dos anos 90 e o fim do regime Mobutu: desvalorização da moeda nacional, rarefacção das divisas, subida dos preços e desemprego endémico. A economia do Grande-Cassai afunda-se ao mesmo ritmo que a MIBA, a Sociedade Mineira do Bakwanga, outrora uma das mais prósperas empresas do país, que está em vias de esgotar o sector diamantífero de Mbuji Mayi e que hoje está a desmoronar em dívidas no valor de 200 milhões de dólares.

Tal como os seus súbditos, os chefes tradicionais estão empobrecidos. Alguns, acusados de serem comprados pelo regime, obtêm o reconhecimento do seu estatuto sem dificuldade. Mas outros, como Kamuina Nsapu, passam horas debaixo de umas árvores em frente ao poder local. Segundo as pessoas próximas, Jean-Prince Mpandi espera, mas não obtém nada.

Kamuina Nsapu, os primeiros motivos de discórdia com o poder

«Eu sou o 6º Kamuina Nsapu…» (versão em inglês)



Créditos: Sonia Rolley, RFI, com a colaboração de Anaclet Tshimbalanga, perito em mediação tradicional.

É no final de 2012 que Jean-Prince Mpandi se torna o 6º «Kamuina Nsapu», quer dizer, um dos principais chefes tradicionais do território de Dibaya, no futuro Cassai-Central. Tem 46 anos. O seu predecessor, Anaclet Kabeya Mupala, era um coronel das Forças Armadas Zairenses (FAZ), o exército do antigo regime. Foi morto alguns meses antes em circunstâncias que os seus próximos acham suspeitas. Évariste Boshab, também ele do Cassai, era na altura Presidente da Assembleia Nacional.

Kamuina Nsapu Ntumba, a quem eu sucedi, foi morto no decorrer dos preparativos de um encontro com Boshab. (…) Em nome da tradição, eu não posso sequer conversar ao telefone com Boshab, porque ele é cúmplice da morte de Kamuina Nsapu Ntumba.»
Extracto de uma conversa telefónica de Jean-Prince Mpandi com uma delegação de deputados, a 11 de Agosto de 2016.

Versão Original

Ler a conversa na íntegra


Em Dezembro de 2014 Évariste Boshab é nomeado por Joseph Kabila Vice-Primeiro Ministro do Interior e torna-se portanto o principal interlocutor de Kamuina Nsapu. O director da segurança nacional é então acusado pelos seus detractores de multiplicar os decretos que concedem o estatuto de chefe tradicional às suas afinidades políticas, criando assim duplicações ou novas entidades tradicionais. Ele nomeia mesmo o seu próprio irmão para liderar a associação dos chefes tradicionais do Cassai-Ocidental, em prejuízo do presidente deposto dessa associação, o senador Emery Kalamba Wafwana, rei dos Bashilange, que pensa ser mais legítimo.

Em Kinshasa, uma desconfiança crescente

Para as autoridades congolesas Jean-Prince Mpandi é um aventureiro, um criminoso que terá passado a sua juventude entre Tshikapa, Lubumbashi, a Zâmbia e a África do Sul. É difícil retraçar o seu percurso. É em Lubumbashi, no Catanga, que faz os seus estudos de técnico agrícola. Não os terá terminado. Nos anos 2004-2005, volta a aparecer em Tshikapa no Cassai. Onde abre uma clínica tradicional e diz ter então aprendido medicina com médicos chineses. Por vezes, diz mesmo ter ido à China. Outras vezes, apresenta-se como um veterinário. Mas já aí, tem um discurso com conotações políticas e fala em unir a sua etnia, os Bajila Kasanga num mesmo movimento. Ninguém lhe conhece afiliação política, mas atribuem-lhe ligações com a África do Sul, onde vive a sua família, e com meios contestatários, como os «combatentes» da UDPS, ou mesmo com Étienne Kabila, o auto-proclamado «irmão» de Joseph, que foi perseguido durante algum tempo, antes de ser absolvido, por tentativa de golpe de Estado contra o chefe de Estado.

O chefe Kamuina Nsapu na corte real de Kamuina Nsapu © DR

Visto de Kinshasa, é em Junho de 2015 que os assuntos se tornam sérios, como o demonstra um documento, nunca tornado público, mas citado recentemente pelas autoridades. Estas tê-lo-iam encontrado nos documentos do chefe Jean-Prince Mpandi e apresentam-no, desde Janeiro de 2017, como uma prova da sua vontade de ter fomentado uma insurreição.

Neste documento, o Senhor Kamuina Nsapu fustiga a negligência do Estado congolês desde o seu acesso à independência, (…) trata todos os detentores civis, militares e policiais de «mercenários», e qualifica o governo nacional de «governo de ocupação»».
Resposta do vice-Primeiro Ministro do Interior Emmanuel Ramazani Shadari à pergunta de um deputado de Dibaya, Martin Kabuya, na Assembleia Nacional, a 17 de Janeiro de 2017

«Este documento intitula-se Não às eleições em 2016», explica em Janeiro de 2017 o novo vice-Primeiro Ministro do Interior, Emmanuel Ramazani Shadari, aos deputados. Segundo o regime de Kinshasa, Jean-Prince Mpandi teria insistido na necessidade em restaurar os poderes tradicionais, «emanações naturais da nacionalidade», teria chamado «todos os jovens» a erguer barricadas e a perseguir os estrangeiros do Grande Cassai, à excepção dos «diplomatas». Sempre de acordo com o poder ele teria lançado um ultimato para 31 de Dezembro de 2015 à meia-noite. Verdadeiro ou falso? O que é certo, é que Kamuina Nsapu pensava criar um órgão de comunicação, a «Voz Tradicional». Vários documentos áudio e vídeo testemunham este interesse por uma certa exposição mediática. Depois da sua morte, esses documentos tornaram-se «virais» nas redes sociais.

Nada aconteceu na noite de 31 de Dezembro para 1 de Janeiro de 2016. Mas pelos seus discursos, o chefe tradicional atraiu a atenção dos serviços de segurança. Segundo um alto responsável dos serviços de segurança, foi o chefe Ntenda, um primo, que o teria acusado de fomentar uma insurreição.

Com base nas informações recebidas, no mês de Abril de 2016, de um correspondente dos serviços assinalando a presença de armas de guerra no grupo dito Kamuina Nsapu, o conselho provincial de segurança tinha despachado para o local uma missão conjunta ANR, FARDC, PNC para proceder à verificação dos factos.»
Resposta do vice-Primeiro Ministro do Interior Emmanuel Ramazani Shadari à questão de um deputado de Dibaya, Martin Kabuya, na Assembleia nacional, a 17 de Janeiro de 2017

O chefe Kamuina Nsapu diante da Tshiota, o fogo sagrado na vila de Kamuina Nsapu © DR


«Eu não sou um chefe tradicional traidor»

A influência de Kamuina Nsapu aumenta. Não somente por causa dos seus discursos contestatários diante da Tshiota, o fogo sagrado, mas também por causa das cerimónias que organiza, nomeadamente o baptismo, onde é administrada uma poção que é suposto tornar mais forte, até mesmo invencível às balas. Segundo um responsável dos serviços de segurança que pediu o anonimato, estas cerimónias, associadas a discursos com conotações políticas, aconteciam já antes de 3 de Abril de 2016. Nesse dia, enquanto Kamuina Nsapu se encontrava na África do Sul, as forças da ordem efectuaram uma forte rusga ao seu domicílio. Uma rusga da qual ele dirá, até ao fim, não ter percebido as respectivas razões.

Eu, eu não sou um chefe costumeiro traidor. Eu não quereria jamais vender a terra dos nossos antepassados. Eu não quereria trair o meu reinado. Eu não aceitarei tocar no dinheiro dos traidores. E eu não aceitarei ser membro do partido político deles. Eu não me imiscuo nos assuntos do Estado. Porque é que eles me vêm provocar? É esse o problema. Eles tocaram nos meus objectos consagrados que incarnam o meu poder.»
Conversa telefónica de Kamuina Nsapu com os deputados, a 11 de Agosto, a véspera do dia da sua morte

Ler a conversa na íntegra

Entrevista RFI – 14/02/2017 (Versão Original)

Manifestação «de uma frustração» por Anaclet Tshimbalanga, perito em mediação tradicional



Para Jean-Prince Mpandi, esta rusga é a gota de água que faz transbordar o copo. Quando ele regressa da sua estada prolongada na África do Sul, onde reside a sua família, o chefe tradicional ergue barricadas em torno do seu domicílio. No seguimento de uma tentativa de mediação do deputado provincial Daniel Mbayi, a 15 de Julho de 2016, o chefe Kamuina Nsapu aceita levantar estas barricadas como sinal de boa vontade. Ele propõe mesmo, segundo este deputado, um plano de paz incluindo a construção de uma escola, de um centro de saúde e a distribuição de sementes.

Kamuina Nsapu aceita levantar a barreira (versão em inglês)



A última semana de Kamuina Nsapu

A 18 de Julho de 2016, o Presidente Joseph Kabila chega a Kananga, capital da província do Cassai-Central. Ele vem inaugurar, oficialmente, uma central solar, mas ele procura também tomar conhecimento sobre o caso «Kamuina Nsapu». A faltarem cinco meses do fim do seu mandato, espera que um primeiro diálogo político, sob a égide da União Africana, vá ratificar a sua continuação no poder depois de 19 de Dezembro de 2016 (data do fim do seu segundo e último mandato constitucional). Mas o regresso anunciado de Étienne Tshisekedi poderia contrariar este cenário. De facto, a 27 de Julho de 2016, o cortejo do velho opositor mobiliza meio milhão de pessoas nas ruas de Kinshasa.

"#RDC : Em 360, daria isto"


A 23 de Julho de 2016, presumíveis adeptos de Kamuina Nsapu lançam uma operação punitiva contra Ntenda, o vizinho e rival de Jean-Prince Mpandi. Uma centena de cabanas são queimadas e pelo menos seis pessoas mortas. O chefe Kamuina Nsapu desmente estar na origem deste ataque e acusa o chefe Ntenda de ter provocado um dos seus vizinhos ao instalar barricadas. Jean-Prince Mpandi assegura que os seus homens não participaram neste ataque, o que o seu rival desmente. O chefe Ntenda terá sido credível diante das autoridades.

Na noite de 3 para 4 de Agosto de 2016, outras milícias surgem na estação de comboios e no posto de polícia de Mfuamba, no território vizinho de Demba. Espancam os polícias e levam uma Kalachnikov. A 8 de Agosto, enquanto o chefe de Estado está no leste do país para selar a paz com os seus vizinhos, o chefe tradicional ataca a vila de Tshimbulu. O balanço oficial é de nove mortos, entre os quais cinco polícias. Comissariado, sub-Comissariado, residências do comando da polícia e do presidente da câmara municipal e da vila e mesmo o escritório da Comissão eleitoral… Tudo é incendiado.

Um próximo de Kamuina Nsapu fustiga os que conduzem a guerra. (versão em inglês)


A 11 de Agosto de 2016, o Conselho Nacional de Segurança (CNS), conduzido pelo vice-Primeiro Ministro do Interior, Évariste Boshab, está no Cassai-Central. Todos os chefes de forças e de serviços de segurança fazem parte da missão. Uma delegação de deputados nacionais eleitos na província é igualmente despachada a Kananga. Por entre eles encontra-se o opositor Clément Kanku, que é detido no próprio dia pelo CNS pelo seu apoio ao chefe Kamuina Nsapu com base em escutas telefónicas com um presumível membro das milícias.

O que se sabe das escutas telefónicas do deputado Clément Kanku?

As autoridades pedem aos deputados para transmitir um ultimato a Jean-Prince Mpandi. Ele tem 24h para se entregar às forças de segurança. Caso contrário, será morto. «Estamos em vias de viver as suas últimas horas», dir-lhe-á mesmo um deles.

Que franja da população confia nos vossos serviços de segurança? A polícia faz sofrer a população, os soldados fazem sofrer a população, a ANR faz sofrer a população. Logo, eu não confio em nenhum dos vossos serviços de segurança. Se as vossas autoridades querem, que venham buscar à força.»

Eu não posso ir para Kananga para me entregar assim de maneira estúpida. Se eu fosse, onde é que seria recebido? Quem se encarregaria da minha protecção? Então, peço-vos que solicitem a Monusco para que garanta a minha segurança em Kananga.»
Extractos de uma conversa telefónica de Jean-Prince Mpandi, chefe Kamuina Nsapu, com uma delegação de deputados, a 11 de Agosto de 2016

Versão Original

Ler a conversa na íntegra

O chefe Kamuina Nsapu propõe aos deputados que venham ter com ele para falar. Ele insiste para que a Monusco intervenha. Respondem-lhe que ela já não se encontra no Cassai-Central. Numa segunda conversa com o professor Ambroise Kamukuny, deputado nacional, eleito do território vizinho de Kazumba, esta tem conotações proféticas.

É verdade, pode temer pela sua segurança; mas as autoridades do Estado não nos podem mentir ao dizer-nos a nós, seus filhos, que a sua segurança está garantida. Por conseguinte elas nada podem fazer. Mas se essas pessoas vêm invadir o seu reino para matar mulheres e crianças, isso não nos agradará, nem a si de igual modo…»
ilustre Ambroise Kamukuny, deputado nacional do Cassai-Central

Com que motivo os matariam eles?»
Jean-Prince Mpandi, o chefe Kamuina Nsapu

Não, mas durante operações militares, os assaltos são possíveis. Porque quando eles tentassem prendê-lo, nenhum dos seus súbditos aceitará.»
Ilustre Ambroise Kamukuny, deputado nacional do Cassai-Central

Eu quero escrever a história, deixo-vos o Congo, façam dele o que quiserem. Mas as vossas mensagens de intimidação, tal como a contagem decrescente, já começaram. Que os militares me cerquem, eu, eu não posso aceitá-lo. Apenas a Monusco pode vir buscar-e. Em caso contrário, enviem as vossas tropas para me matar.»
Jean-Prince Mpandi, chefe Kamuina Nsapu

Versão Original

Ler a conversa na íntegra
A morte do chefe

A 12 de Agosto de 2016, segundo pessoas próximas, Jean-Prince Mpandi espera ainda a chegada da delegação de deputados. Mas não fica surpreendido quando descobre que se aproximam militares da sua aldeia. O chefe Kamuina Nsapu tinha-o anunciado aos deputados. Se ele deve morrer, ele decidiu que morrerá em casa, na sua terra. Jean-Prince Mpandi vai ao encontro das forças de segurança. Ferido, é obrigado a bater em retirada.

Ataque sangrento contra o chefe Kamuina Nsapu: relatório de situação (versão em inglês)

Por volta das 16h, o 6º Kamuina Nsapu é morto com uma bala na barriga, mesmo atrás da imensa árvore que abriga o seu pátio e ao lado do tractor moderno que era o orgulho dos aldeões. Essa árvore está crivada de balas, sinal da violência do ataque. Os militares celebram a sua vitória e agitam-se em torno do corpo do chefe. Um facão é posto sobre a sua perna e o seu pé quase arrancado. O seu rosto tumefacto e o cimo da sua camisa branca está inundada de sangue. A sua mão ferida. O seu corpo é levado pelas forças da ordem, o que deixa a sua família imaginar o pior a propósito do que Jean-Prince Mpandi pôde suportar. Boatos falam de mutilações.

Este, é o chefe Kamuina Nsapu que levou com uma bala na barriga. Ei-lo na sua residência. (…) Nós avisamos que a força permanece do lado da lei.»

Tu, tu brincas com o Presidente da República. Embora tenha sido ele que, uma vez instalado, te fez. E tu, tu tratá-lo como um insignificante.»
Palavras de militares em torno do cadáver de Kamuina Nsapu, a 12 de Agosto de 2016



A morte do chefe Kamuina Nsapu (versão em inglês)


O constrangimento do Cassai

Bem longe da extinção do lume, a morte de Jean-Prince Mpandi atiça-o e permite que o seu «sonho» se realize. Um exército de jovens levanta-se contra a autoridade do Estado. A sua morte marca o início de uma insurreição sem precedentes e de uma repressão de uma rara violência no espaço do Grande-Cassai. No início de Setembro de 2016, a ONU contabiliza já pelo menos 51 mortos, 21 localidades são directamente afectadas pelo conflito, 806 cabanas queimadas, edifícios do Estado destruídos e perto de 12000 deslocados para o território de Dibaya.

Pessoas próximas do chefe Kamuina Nsapu no meio das ruínas da sua corte real, a 11 de Março de 2017 © Sonia Rolley

«Sonho» ou pesadelo? O território de Kamuina Nsapu vê, então, chegar um exército comandado por oficiais, essencialmente ruandófonos. Estes oficiais que ele acusava em vida de terem violado os seus atributos de poder e de tudo fazer para manter o presidente Joseph Kabila no poder depois do fim do seu segundo e último mandato.

Reforços militares chegam no fim de Dezembro de 2016 e no início de Janeiro de 2017. A Missão das Nações unidas no Congo, a Monusco, tem dificuldade em posicionar os seus capacetes azuis e em investigar as crescentes alegações de massacres cometidos pelas forças de segurança, mas também os abusos cometidas pelas milícias.

No Cassai, a forma como se opera é a mesma da província do Cassai-Central ou até da província do Cassai-Oriental: atacar tudo o que é símbolo do Estado. Nós lidamos com uma milícia composta por jovens com idades entre os oito e mais ou menos os trinta anos (…) drogados por consentimento e pessoas que mergulharam em ritos sob pretexto de não serem feridos por bala. Estas pessoas dispõem de armas brancas, de paus guarnecidos de tudo e de pedras apropriadas à agressão para atacar todos os polícias ou militares no caminho. As milícias usam também armas de fogo, de calibre 12 de fabricação local, e armas de guerra recuperadas durante ataques a esquadras de polícia.»
Resposta do vice-Primeiro Ministro do Interior Emmanuel Ramazani Shadari à pergunta de um deputado de Dibaya, Martin Kabuya, diante da Assembleia nacional, a 17 de Janeiro de 2017.

Jovens das milícias Kamuina Nsapu fotografados no decurso de uma operação de sensibilização param a paz ©DR

No início, o governo denuncia um movimento insurrecional de jovens drogados desocupados e esconde as perdas que lhe são dirigidas. Desde a descoberta das primeiras valas comuns pela ONU, o governo qualifica cada vez mais os insurgentes como «terroristas».

Ele está ainda vivo. Diríamos que ele tem ainda uma arma. Kamuina Nsapu, intercede por nós, as mulheres e as crianças estão a morrer. Tirem-lhe as armas.»

Comias as cabras de outrem. Tiveste aquelas que tinhas direito. Ficaste com as cadeiras das pessoas, o amendoim…»
Extractos de um vídeo filmado durante uma operação de milícias Kamuina Nsapu contra a esquadra de polícia no decurso da qual vários polícias foram feridos ou mortos em lugar e data indeterminados.

A tradição contra a mentira

Os Kamuina Nsapu lançam os seus ataques místicos às quintas e sextas-feiras para comemorar não somente a morte do chefe, mas também para se lembrarem das horas que precederam. Eles matam, e decapitam por vezes, os agentes do Estado que conseguem capturar. É uma violência de carácter político e as vítimas são escolhidas: forças de segurança, chefes ou autoridades locais associadas ao poder e portanto «traidores», agentes da Comissão eleitoral. Tal como os militares, os jovens das milícias fotografam-se e, mais raramente, fazem gravações vídeo com as suas vítimas.

Ataque de uma esquadra de polícia por milícias Kamuina Nsapu (versão em inglês)


Mas é antes de tudo uma insurreição popular. Os comerciantes que se recusam a pagar taxas cada vez mais elevadas dizem-se espontaneamente «Kamuina Nsapu». Os jovens nas aldeias têm nos seus bolsos uma fita vermelha, sinal emblemático da revolta. Quando são presos, tal é por vezes suficiente para os transformar em milícias. E quando chegam às aldeias, fugindo das forças de segurança, são facilmente acolhidos. As populações dizem reconhecer-se nessa fúria. São censurados e escorridos por militares e pela morte. Censuram-lhes também, cada vez mais, de tomarem as escolas e as igrejas. O cansaço ganha as zonas mais regularmente afectadas.

Operação», entoa um chefe de milícia
«A tradição», respondem os adeptos
Extractos de um vídeo filmado durante uma operação de milícias Kamuina Nsapu contra uma esquadra de polícia durante a qual vários polícias foram feridos ou mortos em lugar e data indeterminados.

A insurreição propaga-se às cinco províncias do Grande Cassai. Sankuru é a última a ser «contaminada» – não há outras palavras. Quanto mais o governo reprime, mais as milícias se espalham e angariam novos adeptos. Os Tshiota – os «baptismos», a revolta contra a ingerência nos assuntos tradicionais, a marginalização, a recusa da pobreza e da manutenção no poder de Joseph Kabila… Todas estas temáticas «falam» aos habitantes do Cassai. As milícias passam da sua área tradicional à da sua etnia. O contágio faz-se passo a passo.

O sistema Kamuina Nsapu

Interrogatório de uma menina moribunda no poder local de Kananga (versão em inglês)


Sexta-feira, 27 de Janeiro de 2017, os adeptos de Kamuina Nsapu conduzem um dos seus «ataques místicos» sobre Kananga. Esta menina é ferida e conduzida para o interior do poder local para interrogatório. Quem é o seu chefe? Onde é que ela tomou a poção? Um civil filma a cena. A criança morre alguns minutos mais tarde.

Transportai-me, Deus vos abençoará» A menina leva um pontapé na cara

«Conheces Deus, menina malvada?
És criminosa. Uma menina tão bonita.»
Interrogatório de uma menina ferida por bala a 27 de Janeiro de 2017 no poder local de Kananga

Na maioria dos vídeos filmados pelas forças de segurança, a questão da «mentira» é central. Diante dos cadáveres das suas vítimas, e com um telemóvel, os militares acusam os interrogados de mentirem. Os Kamuina Nsapu, jovens e crianças na maioria, morrem efectivamente com balas das forças de segurança. O baptismo, quer dizer, a poção de invencibilidade, não os protege. Contudo, eles continuam a voltar ao ataque incansavelmente.

Ataque sangrento contra o chefe Kamuina Nsapu: diante das crianças (versão em inglês)


Para um acordo com a família de Kamuina Nsapu

Até à morte de Étienne Tshisekedi, no dia 1 de Fevereiro de 2017, o governo central não pode meter os pés em Kananga. O novo Primeiro- ministro, Samy Badibanga, (nomeado na sequência do diálogo concluído sob a égide da União Africana) é contudo um «filho do país». O seu pai tinha um bar na aldeia. A 26 de Janeiro, na véspera do ataque sobre Kananga, no final do qual uma menina vai agonizar no recinto do poder local, o primeiro-ministro planeia uma visita… que ele deve adiar sine die. As forças de segurança tentam retomar o controlo na região. No momento em que ele dialoga em Kinshasa com a UDPS de Étienne Tshisekedi e os seus aliados agrupados na oposição, o novo vice-Primeiro Ministro encarregado do Interior, Emmanuel Ramazani Shadari, enceta paralelamente negociações com a família real de Kamuina Nsapu para tentar extinguir o lume.

Reportagem RFI, 12 de Março de 2017
(versão original)

Sete meses depois da morte do chefe, na sua vila, as pessoas próximas reclamam ainda o corpo do chefe Kamuina Nsapu.

A 12 de Março de 2017, o director da segurança interior consegue aterrar em Kananga. O acordo com a família está quase fechado. Membros eminentes da corte real chegaram. Emmanuel Ramazani Shadari desembarca ao cair da noite com uma importante delegação. A pista está cercada com todas as forças de segurança da aldeia, porque houve novos confrontos durante o dia. Tanto os deputados do partido maioritário bem como os da oposição que acompanham o vice-Primeiro Ministro estão convencidos de que a assinatura do acordo está já adquirida. Os membros chave da família também já estariam convencidos. Na condição de poder fazer os gestos necessários.

Chegada a Kananga de Emmanuel Ramazani Shadari, vice-Primeiro Ministro encarregado do Interior. (versão em inglês)


No mesmo dia, quase à mesma hora, dois peritos da ONU são mortos a uma centena de quilómetros, não longe de Moyo-Musuila. O americano Michael J. Sharp e a sueca Zaida Catalan tinham vindo para identificar os responsáveis da violência no Grande Cassai. Eles trabalhavam para o Conselho de Segurança das Nações Unidas e estavam encarregados de reunir as provas necessárias para o voto de sanções. A 12 de Março de 2017, os dois peritos são assassinados quando iam ao encontro «de grupos» de Kamuina Nsapu na região de Bunkonde. Não longe dali, em Ngombe, encontra-se uma das primeiras Tshiota do pós-Mpandi. Segundo um relatório confidencial da ONU, esta Tshiota esteve por entre as que mais recrutaram crianças. Ora, as investigações sobre os recrutamentos de crianças fazem parte do mandato dos peritos da ONU, tal como todos os abusos cometidos ao mesmo tempo pelos Kamuina Nsapu e pelas forças de segurança.

Em Março de 2017, depois da morte de Étienne Tshisekedi, o segundo diálogo nacional, que teve lugar desta vez sob a égide da Igreja Católica, afunda-se. Um acordo de princípio de partilha do poder foi assinado a 31 de Dezembro de 2016, mas faltam ainda determinar os aspectos práticos. A UDPS, o partido do defunto opositor histórico, reclama a demissão do governo Badibanga e a nomeação de um novo primeiro-ministro de sua escolha.

Mas, no Grande Cassai, as discussões estão ainda em curso. O vice-Primeiro Ministro do Interior, Emmanuel Ramazani Shadari, consegue pouco a pouco convencer a família real a assinar um acordo com ele.

Reportagem RFI, 12 de Março de 2017 (versão original)

Na vila de Kamuina Nsapu, jovens milícias que se apresentam como os jovens irmãos de Jean-Pierre Mpandi dizem estar prontos a fazer a paz, mas reclamam o desenvolvimento do seu território e a restituição do corpo do seu chefe tradicional.

É preciso dizer que membros importantes da corte não estiveram nunca muito longe do poder. Se o deputado Clément Kanku, um dos eminentes súbditos do chefe Kamuina Nsapu, se tornou ministro do governo Badibanga, a ministra provincial da Saúde é, ela, da linha real. Innocente Bakanseka é uma das mais próximas do governador Alex Kande, que é odiado pela família real. Como Évariste Boshab, foi afastado do governo no início deste ano de 2017. Desde o início do conflito, os membros da família foram abordados pelo poder após os outros.

A 17 de Março de 2017, Emmanuel Ramazani Shadari anuncia o fim do fenómeno Kamuina Nsapu. Um acordo foi encontrado com a família. Um mês mais tarde, o novo chefe Kamuina Nsapu é designado por representantes da família. Jacques Kabeya Ntumba trabalhou com o deputado Clément Kanku em Kinshasa. É considerado próximo das autoridades. Raríssimas vozes no interior da corte se elevam para o contestar. Oficialmente, o corpo de Jean-Prince Mpandi foi entregue à família e esta apela ao fim das hostilidades. Mas no terreno, nada muda.

A crise não pára e complexifica-se

Desde Agosto de 2016, o conflito estendeu-se além da zona tradicional de Kamuina Nsapu. O Grande Cassai, refúgio de paz, tornou-se uma zona de guerra com o seu milhão de deslocados internos e os seus cerca de 30 000 refugiados que fugiram para o outro lado da fronteira, na província angolana de Lunda Norte. Esta zona parece-se cada vez mais ao leste da RDC. Os conflitos étnicos são instrumentalizados para fins políticos ou securitários. No território de Luebo, tal como em Tshikapa, as milícias Pende e Tshokwe, que são consideradas próximas das autoridades, e as milícias Luluwas, de onde são provenientes os primeiros Kamuina Nsapu, desenterram o machado de guerra. A União Europeia até aplicou sanções contra Gédéon Kyungu, porque ele teria injectado as suas milícias no conflito no Cassai e criado ainda mais confusão. Este chefe de guerra do Catanga, acusado de crimes contra a humanidade, entregou-se às autoridades hasteando uma t-shirt com a imagem de Joseph Kabila. Oficialmente para preservar a ordem pública, as autoridades conduziram-no para uma casa chique de Lubumbashi onde o colocaram em prisão domiciliária.

Para saber mais : Repressão na RDC: nove altos responsáveis oficialmente sancionados pela EU (versão original)

Início de Maio de 2017, depois do assassínio de um dos seus agentes, a Comissão Eleitoral (Ceni) anuncia a suspensão do recrutamento de eleitores no Grande Cassai, o que ameaça atrasar de novo todo o processo eleitoral. A Ceni é um dos alvos privilegiados dos Kamuina Nsapu, que a acusam de tudo fazer para manter Joseph Kabila no poder.

Direito de resposta

Solicitado pela RFI para responder a todas as questões levantadas pela investigação, o porta-voz do governo, Lambert Mendé, exprimiu-se esta quinta-feira, 15 de Junho de 2017, na antena da RFI.

Clique para ler ou ouvir a entrevista na íntegra. (versão original)

Por outro lado, posto em causa pelo falecido Jean-Prince Mpandi, o antigo vice-Primeiro Ministro, Evariste Boshab, não quis responder às questões colocadas pela nossa redacção.

Direito de resposta do advogado e deputado Clément Kanku


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