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No espaço de dez meses, o Grande Cassai, que foi durante 40 anos um porto seguro, transforma-se numa zona de conflito. Desde a morte do chefe Kamuina Nsapu, contabilizam-se centenas, talvez milhares de mortes, pelo menos 42 valas comuns e mais de um milhão de deslocados. Face à revolta sem precedentes, as forças de segurança lançam uma violenta campanha conta a revolta. Os responsáveis são conhecidos. São produto das horas mais sombrias da história do Congo, fruto das duas guerras e das atrocidades que desde então se perpetuam no leste do país.

O Grande Cassai ultrapassou o leste do Congo. A violência atinge uma intensidade rara. Em dez meses o conflito entre os apoiantes do chefe tradicional Kamuina Nsapu e as forças de segurança atingem cinco províncias. São encontradas pelo menos 42 valas comuns. A cada semana que passa, são emitidos comunicados de agências ou organizações humanitárias, novos balanços, mais de um milhão de deslocados no Grande Cassai. Desde Janeiro de 2017, a revolta aumenta e os conflitos inter-étnicos são mais frequentes e instrumentalizados por fins políticos. Os Kamuina Nsapu reagem à implementação de grupo de auto-defesa do tipo Maï-Maï criado no início da primeira guerra no Congo. Para as milícias, estes militares, e em particular os que pertenceram a várias rebeliões apoiadas pelo Ruanda, são consideradas invasoras tal como o são as forças ruandesas.

Perto da aldeia de Bitande, perto da estrada N40. © Sonia Rolley

Em 1996 e 1997, são assassinados dezenas ou centenas de milhares de refugiados hutus ruandeses e civis congoleses no caminho que seguia a Aliança das forças democráticas em prol da libertação do Congo (AFDL) de Laurent-Désiré Kabila que detém o poder em Kinshasa. Para muitos, este assunto continua a ser tabu e nenhum crime foi julgado. É a base da cultura da impunidade no Congo. Antes deste fluxo de milhões de refugiados, entre os quais se contabilizam os que tinham cometido genocídio dos Tutsis em 1994 no Ruanda, o leste do Congo não é assim tão diferente do Grande Cassai. Apesar de alguns dramas , a situação era normalmente calma e ainda não se registavam actos recorrentes e generalizados de violências. E mesmo se no Ruanda e no Burundi, países vizinhos, as catanas já tinham sido usadas, o leste do país resistia o quanto possível. Sem massacres de massas nem campanhas de violações, torturas ou valas comuns. A violência nunca atingira uma escala tal na RDC. Os oficiais que prestam serviço no Grande Cassai começaram as suas carreiras nesta altura. Oficiais ou « Kadogo », são, na maioria, soldados do leste do país, que foram chamados para as terras “sagradas” do chefe Kamuina Nsapu, em prol da restruturação da força congolesa.

O sistema Kamuina Nsapu

Na véspera da sua morte, o chefe tradicional Kamuina Nsapu não imagina que as suas terras estejam prestes a cair em tal violência. Um deputado alerta: « Se esta gente invadir o nosso reino para matar mulheres e crianças..… ». Mas Jean-Prince Mpandi nada quer ouvir. Não quer ceder face ao poder e às suas forças de segurança.

É o confronto entre dois mundos de um lado Kinshasa, o poder, o dinheiro e os guerreiros e do outro lado, as campanhas do Grande Cassai, marginalizados, onde ainda são lembrados os tempos nos quais os chefes tradicionais eram reis. Kamuina Nsapu esperava construir um reino na RDC de Joseph Kabila, voltar às tradições e perseguir o Estado. As milícias hoje tentam realizar esse “sonho” com violências políticas. Frente a ele encontram-se guerreiros do leste.

Dois vídeos do mesmo massacre de crianças perto da aldeia do chefe kamuina nsapu, 12 de agosto de 2016



Assalto sangrento contra o chefe Kamuina Nsapu : segundo ponto de vista (versão em inglês)



Assalto sangrento contra o chefe Kamuina Nsapu : face às crianças (versão em inglês)



O general Eric Ruhorimbere, antigo rebelde lidera a repressão

A 29 de Maio 2017, A União Europeia adopta sanções contra nove personalidades congolesas, a maior parte delas com teor politico. Sobre o dossier Cassai, consta apenas o nome de um oficial: o General Eric Ruhorimbere . Chefe das operações, é acusado de ter usado da força e de ser responsável pelos abusos cometidos pelos seus militares no Grande Cassai.

O general Eric Ruhorimbere é sancionado pela União Europeia por ter cometido actos violentos no Grande Cassai. © DR


Se hoje está instalado em Mbuji-Mayi no Cassai Oriental, Eric Ruhorimbere fez parte de todas as rebeliões no leste do país, entre as mais denunciadas pela ONU pelo crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Óculos de sol bem assente no nariz, postura rígida, Eric Ruhorimbere não é um homem de hesitações.

Durante a primeira guerra do Congo , ele escolhe A AFDL , a revolta, apoiada pelo Ruanda e Uganda, que conduz uma campanha militar de uma rara violência e derruba, em poucos meses, o regime do Presidente Mobutu. A sua etnia, os Banyamulenge , é alvo de ataques por parte dos Hutus ruandeses das ex-FAR / Interahamwe e por parte dos milícias da comunidade congolesa . Pertencendo a um pacto objectivo com o Ruanda. O novo regime de Kigali quer expulsas os Hutus, ex-FAR como se fossem refugiados. Os Banyamulenge querem vê-los fora das suas terras.

Grande reportagem RFI, 6 de Outubro 2016
(versão original)

Lemera, 20 anos de impunidade ao Congo. A história do primeiro crime e da primeira guerra



Eric Ruhorimbere é ainda um combatente rebelde quando entra na RCD contra o jovem regime de Laurent-Désiré Kabila que se voltou contra os antigo aliados Kigali e Kampala. É o início da segunda guerra do Congo . Eric Ruhorimbere é suspeito de fazer parte dos comandantes banyamulenge, tendo participado no assassínio de 36 oficiais congoleses no aeroporto em Kavumu, no sul-Kivu, a 4 Agosto de 1998, e nos massacres de Makobola e Kasika, no sul-Kivu, entre 1998 e 1999.

O « Mapa de relatório», 20 anos de impunidade no Congo

À saída da guerra, Eric Ruhorimbere não tem intenção de deixar o seu “reino” no leste do país. Tal como o companheiro de armas Laurent Nkunda , recusa em 2003 de se mover, isto é de se misturar com outros antigos beligerantes e enviados numa outra província da RDC. Situação recíproca entre vários oficiais ruandofónos . Para eles, fora de questão de legar aos inimigos a segurança das famílias e bens no norte e sul de Kivu. O objectivo é criar uma nova força nacional e republicana. Foi com esse intuito que foram criadas as FARDC, Forças armadas da República Democrática do Congo.

Em 2004, aquando da tomada da Bukavu, encontra-se, sem surpresa, Eric Ruhorimbere ao lado do coronel rebelde Jules Mutebutsi. Tal como ele, ver-se-á obrigado de fugir uns tempos para o Ruanda. Três anos depois, regressa ainda que tarde ao CNDP , a revolta de Laurent Nkunda. Após 10 anos de impunidade, estes oficiais não hesitam em cometer massacres, sob olhar dos capacetes azuis, como em Kiwanja, em 2008.



Os habitantes descobrem uma das vítimas do massacres de Kiwanja, no 6 de Novembro 2008. © Roberto Schmidt / AFP


Nos dias 4 e 5 Novembro 2008 cerca 150 pessoas foram mortas na cidade Kiwanja, pelo menos a um quilómetro das forças para a manutenção da paz nas Nações Unidos. Este ataque representa um dos piores massacres dos últimos dois anos no Norte-Kitvu.»
Massacres em Kiwanja, a incapacidade da ONU proteger os civis, HRW, Dezembro de 2008 (versão em inglês)

Os combatentes do CNDP procederam a abuso sistemáticos, essencialmente homens adultos eram acusados de pertencerem ou apoiarem os grupos Maï-Maï»
segundo um relatório sobre as graves violações dos direitos dos homens cometidas em Kiwanja, em Novembro de 2008, BCNUDH , Setembro de 2009

Ligação em versão original, segundo o relatório sobre Kiwanja de Setembro 2009 (versão em inglês)

O único erro de percurso, no M23 . A diferença com os outros movimentos rebeldes no leste é que Eric Ruhorimbere não segue este movimento, mesmo se durante muito tempo obedeceu a ordens de Bosco Ntaganda, conhecido por « Terminator », que está na origem desta revolta de 2012. Enquanto o M23 foge para o Uganda e o Ruanda, Eric Ruhorimbere é recompensado pela sua aparente fidelidade aos FARDC. Mesmo que faça parte dos generais considerados pela Monusco como « vermelhos », é promovido general em 2014. A faltarem dois anos do segundo e último mandato, Joseph Kabila nomeia-o, em companhia de outros generais “vermelhos”, no centro e oeste do país. Terá sido uma coincidência? É nesse sítio que a população é mais susceptível de se manifestar contra a manutenção do poder.

O outro motivo pelo qual o poder movimenta generais de leste para oeste é para impedir que antigos rebeldes se voltem contra o Presidente Joseph Kabila, nomeadamente, cortando as suas bases, no Ruanda e Uganda.

A redistribuição faz-se com grandes prejuízos dos habitantes de Cassai que consideram estes militares como estrangeiros, ruandeses, vistos como criminosos e opressores. Um dos primeiros a abrir a via leste-oeste é o general Obed Rwibasira , até aqui era comandante da região militar do norte-Kivu. Foi acusado de deixar entrar as forças ruandesas para invadirem o território congolês. É transferido em Dezembro de 2004 para Mbuji-Mayi, no Cassai-Oriental, e depois em Kananga, no Cassai-Central. Quando a crise no M23 rebenta, o Estado-maior teme que alguns oficiais se juntem aos motins. Entre as unidades, encontra-se o 811e régiment , comandado pelo coronel Innocent Zimurinda, que também se mudou para Kananga em Abril de 2012. Muitos dos oficiais ruandófonos têm perto de dez anos instalado no Grande Cassai.



À Em Tshimbulu, o coronel François Muhire e 19 valas comuns


Massacre em Tshimbulu, Janeiro 2017 (versão em inglês)



Congo, 2017 trouxe rios de sangue. Diz-se sempre que o que se procura se encontra.»
Extracto de vídeo de um militar filmado a 4 de Janeiro de 2017, em Tshimbulu.



Em Tshimbulu, no Cassai-Central, os habitantes chamam « catástrofes» à sucessão de ataques místicos e de repressões sangrentas que, nos últimos meses, marcam o dia-a-dia. A primeira “catástrofe” decorreu quando o chefe Kamuina Nsapu ainda era vivo. No 8 de Agosto de 2016, os seus apoiantes assaltam a esquadra de polícia e de outros estabelecimentos públicos. Estes confrontos tiram a vida a dezenas de pessoas. Mas é a partir de Janeiro de 2017 que se derramam “rios de sangue”. Em cinco meses, as milícias atacam, dez vezes, e são massacrados em Tshimbulu e nas localidades vizinhas. Quanto às 42 valas que a ONU encontra até hoje, 19 encontram-se em Tshimbulu.



O coronel François Muhire acusado de massaces de Tshimbulu e Kitchanga. © DR


- Eu, nunca vi um cadáver de militares, e não sei se têm alguma forma de os esconder. Mas os civis, vi-o, eu vi. Crianças pequenas.
- E o que fizeram aos corpos?
- Enterram-nos. Enterram-nos.»
Extracto de testemunho de uma habitante em Tshimbulu recolhido pela RFI no dia 11 Março de 2017



Entrevista RFI, 11 de Março 2017 (versão original)

Uma habitante de Tshimbulu evoca valas comuns escavadas por militares em redor da sua localidade



Desde Janeiro de 2017 e desde o aparecimento de valas comuns, o oficial encarregue desta operação em Tshimbulu chama-se François Muhire Sebasonza .

A justiça militar congolesas acusa-o de ser um dos principais autores de um massacre cometido há quatro anos no norte-Kivu. Estamos em Kitchanga, no Norte-Kivu, em Fevereiro de 2013. O regimento de François Muhire, na época, chamava-se 812e. Os confrontos transformam-se em massacres: pelo menos 200 mortes e centenas de casas queimadas ou saqueadas.

François Muhire e os seus homens suspeitavam que civis apoiavam grupos armados rivais, acabados de integrar as forças congolesas. A justiça militar congolesa identifica 14 oficiais, entre os quais François Muhire, como um dos principais responsáveis por actos violentos.

Pior, o grupo de peritos das Nações Unidas acusa François Muhire de ter distribuído armas a civis da sua comunidade, enquanto o superior apelava a matar a população de Kitchanga. Depois de ter sido atacada por um grupo armado, a unidade de François Muhire ter-se-ia vingado, segundo peritos da ONU, ao massacrar a população de Kitchanga, acusado de ser cúmplice do grupo rival. Em Julho de 2013, a informação é transmitida pelo grupo de peritos da ONU no Congo ao Conselho de Segurança das Nações Unidas.

O que se sabe do massacre em Kitchanga

Depois do massacre em Kitchanga, François Muhire e os seus homens desaparecem do teatro de operações. Os homens do 812e regimento voltam a ser distribuídos em Kananga, no Cassai-Central. É aí, nesse mesmo ano, que os militares são interrogados pela primeira vez. Três anos depois, no início de 2016, a justiça militar congolesa tem uma lista de 14 suspeitos, entre os quais François Muhire. Mesmo que a justiça tenha interrogado mais de 400 testemunhas, os principais autores deste massacre nunca foram detidos. Empurradas pela ONU , o autor militar congolês encarregado deste difícil dossier, o coronel Jean Baseleba Bin Mateto, pediu à hierarquia para chamar 14 oficiais em Goma. O magistrado identificou os nomes das novas unidades. Mas não emite mandados de captura. Segundo algumas fontes próximas do dossier, ele hesita, uma vez que teme as represálias.

Listas dos principais suspeitos estabelecidos pelas justiça militar congolesa.

Em Maio 2016, algumas horas depois do pedido, do coronel Bin Mateto é transferido para a província do Kongo-Central, longe de Goma e deste dossier. Oficialmente, segundo informações recebidas por magistrados militares, o 812º regimento é suposto encontrar-se no Katanga, longe do Grande Cassai. Mas quando a crise Kamuina Nsapu rebenta, pelo menos quatro oficiais são suspeitos de participar no massacre de Kitchanga em Kananga, a partir de Tshimbulu. Nos palcos das operações, as valas comuns multiplicam-se.

Faixas vermelhas, símbolo dos Kamuina Nsapu, descoberto perto de uma das dezanove valas comuns documentadas pela ONU. © Sonia Rolley


Entre o dia 8 de Agosto de 2016 e o dia 4 de Janeiro de 2017, Tshimbulu não regista nenhum confronto. O coronel Muhire e os seus homens chegam depois da passagem de ano, em Dezembro de 2016, as milícias lançam o primeiro ataque.


Não tínhamos problemas convosco. Vejam o ano de 2017, queriam regozijar-se no início do ano. Vejam agora Kamuina Nsapu ? Existem vocês e existimos nós.»
Extracto de um vídeo filmado por um militar, Tshimbulu, 4 de Janeiro 2017.

Para as milícias Kamuina Nsapu, os oficiais FARDC ruandófonos são os ruandeses do estrangeiro que tentam perseguir das terras sagradas. A chegada deles foi vista como uma invasão. As milícias atacam quase todos os meses a cidade de Tshimbulu, onde se encontram estes militares. Sob os comandos do coronel François Muhire, os FARDC respondem com mísseis comandados. No vídeo de 4 de Janeiro, como confirmou um militar.

Aqui são braços. O míssil atingiu-o. Este aqui, o míssil reduziu-o quase em pequenos pedaços. Foi ele que provocou esta situação. Ele encomendou a sua peça musical e ofereceram-lhe.»
Extracto de um vídeo filmado por um militar, 4 de Janeiro 2017, Tshimbulu.

Depois do ataque a 9 Fevereiro de 2017 e da repressão que se seguiu, o escritório das Nações Unidas para os direitos humanos divulga publicamente, e pela primeira vez, informações sobre o uso de mísseis pelas forças armadas. No vídeo filmado por um soldado a 9 de Fevereiro de 2017, as armas são apreendidas às milícias e parece haver apenas uma arma de fogo, parece até ser antiga, do tipo espingarda de caça de fabrico tradicional, de calibre 12. A qualidade da imagem não é nítida, mas o militar controla as “armas”. Há três ou talvez quatro. Todas as outras são brinquedos de madeira.

As « armas » apreendidas pelas forças de segurança congolesa. Captura de ecrã de um vídeo do massacre em Tshimbulu em Fevereiro de 2017 (dir) e fotografia publicada no perfil Facebook de um militar (esq). © DR


Reacção da ministra para os direitos humanos quanto à utilização de mísseis. (versão original)

A ministra dos direitos humanos Marie-Ange Mushobekwa, estima que a utilização das armas não é desproporcional uma vez que as milícias recuperaram as armas de fogo aquando de ataques a esquadras de polícia.

Com o telemóvel na mão, o militar revista o corpo das vítimas. Trata-se de um adolescente que é encontrado com as pernas abertas por baixo de um pano que não cobre o corpo. Uma segunda vítima mais velha, na mesma posição, com saia subida. Grande plano. A primeira parece ter sido atingida na cabeça, a segunda tem a parte de cima do corpo cheio de sangue. O autor do vídeo filma em proximidade todos os ângulos. Uma criança, com a cara desfeita. Andam à volta dele. Dois jovens com bandeiras vermelhas. O segundo com calças para baixo. Plano aproximado do corpo. Cinco vítimas, entre as quais mulheres e crianças, com brinquedos de madeira e armas tradicionais, mas não são armas de guerra. Em plano de fundo, um polícia e militares falam com alguma distância à pessoa que filma. Desloca-se até eles para filmar os corpos.

- Terá a população pedido para que fizessem o que fizeram ?
- Venham, venham ver.
- Não iremos sair daqui. Isto é a nossa função.
- Não saberei ter outra função.
- Até raparigas participam ?
- As raparigas também, pai !»
Extracto de um vídeo filmado por um militar, Tshimbulu Fevereiro 2017

Massacre em Tshinbulu, Fevereiro 2017 (versão em inglês)

As valas comuns de Tshimbulu são fáceis de localizar. Todos os habitantes falam disso. Encontram-se perto da estrada. Ao lado da estrada há marcas de sangue “com textura de cérebro». Por vezes, braços, pernas, corpos por inteiro que foram mal enterrados e ficaram ao ar livre. A terra foi recentemente voltada. As valas que se encontram, na maioria, num raio de menos de cinco quilómetros de Tshimbulu.


Uma das mais importantes das 19 valas comuns registadas pela ONU perto de Tshimbulu. © Sonia Rolley


Reportagem RFI, 20 de Março de 2017 (versão original)

Os habitantes de Tshimbulu traumatizados pela descoberta de uma vala comum



Nos primeiros meses, as forças congolesas parecem ter falta de meios logísticos. Por isso, solicitam camiões civis para transportar soldados ou corpos de vítimas dos confrontos. Assim, no dia 12 de Agosto de 2016, um destes camiões civis é visto num segundo plano num dos vídeos sangrentos contra Kamuina Nsapu. Mas tudo muda a partir de Dezembro de 2016. No dia 21 de Dezembro tem lugar o massacre que fica conhecido por « Mwanza Lomba ». Um vídeo do massacre é realizado por um dos militares presentes . Neste vídeo, que divulga delitos das forças armadas, um dos soldados fala do «escritório 4 ». É o nome do escritório logístico no seio das forças congolesas. É quem está encarregado de se ocupar dos camiões e de os abastecer. Hoje uma fonte no seio do Estado-maior congolês confirma a sua morte em finais de Dezembro-início de Janeiro de 2017, por movimentar camiões militares nesta zona para apoiar operações das forças armadas. Um destes camiões acompanha soldados que, a 21 de Dezembro, assassina presumíveis milícias perto de Mwanza Lomba. Desde Janeiro de 2017, os habitantes de Cassai-Central afirmam ver camiões militares. Quando circulam de noite os habitantes descobrem, no dia seguinte, valas comuns.



Captura de imagens recolhidas de vídeos filmados por militares em Mwanza Lomba aquando do assalto sangrento contra o chefe Kamuina Nsapu © DR



Reportagem RFI, 20 de Março 2017 (versão original)

Perto da localidade de Tshienke, vizinha de Tshimbulu, os habitantes encontraram valas comuns depois da passagem de um camião militar.


O «Tenente Julle », o outro «talhante »

Em Tshimbulu, há um nome que é sussurrado, o do tenente Julle Bukamumbe que diz ser do Cassai. A sua terra natal seria até mesmo de Kazumba, no Cassai-Central. É um « verdadeiro» homem do Cassai que fala tshiluba, mas também duas outras línguas no seio das forças, fala o lingala e o swahili. O «Tenente Julle » chegou um dia com um comandante num dos camiões militares. Isto no final de Dezembro. O comandante foi embora, depois de dar uma volta pelo território de Dibaya, mas o tenente Julle Bukamumbe fica. Já se encontra em Tshimbulu quando o coronel François Muhire é visto pela primeira vez.

Julle Bukamumbe, acusado de ser o «talhante» de Tsimblu. © DR

O tenente Julle Bukamumbe não se esconde, é bastante conversador com a população local. Queixa-se das más relações com os “ruandeses”, beneficiados pela hierarquia. Tal como os Kamuina Nsapu, acusa os companheiros de arma ruandófonos de serem « estrangeiros » . Mas o tenente Julle tem preocupações mais concretas. No início do mês de Março de 2017, segundo uma fonte militar, queixa-se directamente a Kinshasa da falta de alimentos, com grande pena do general Eric Ruhorimbere que terá ligado para Kananga. Outras fontes afirmam que o tenente Julle saqueou a aldeia. Terá também trabalhado para outra autoridade local. Julle Bukamumbe não parece ser muito popular. O tenente Julle « matou muita gente », dizem as pessoas que vivem na aldeia, e não só os de Tshimbulu. Os habitantes do território de Dibaya, onde começou a insurreição, dizem ter reconhecido a voz dele nos vídeos do ataque mortal contra o chefe Kamuina Nsapu, no dia 12 de Agosto de 2016. Três fontes identificaram-no formalmente. Entre elas, o autor de um dos dois vídeos, a verificação mais formal.

Aqui, estamos no cruzamento onde uma das vias conduz à região do chefe Kamuina Nsapu.»



Ataque sangrento contra o chefe Kamuina Nsapu : relatório dos acontecimentos (versão em inglês)



Comportamo-nos em comando-paraquedista do batalhão FARDC, 5ª brigada operacional. Vamos acabar com ele»
Vídeo atribuido ao tenente Julle Bukamumbe, ataque mortal no pátio do chefe Kamuina Nsapu no dia 12 de Agosto de 2016.

Segundo informações recolhidas pela RFI, o tenente Julle Bukamumbe é próximo de She Kasikila, o antigo patrão da 5ª brigada. Há dez anos combateu sob ordens de She Kasikila nesta unidade.


She Kasikila contra os ruandófonos

As brigadas tornaram-se num regimento em 2010 e 2011. Os homens da 5ª brigada foram transferidos para o 811ª regimento das FARDC. Em 2012, foram mudados para Kananda para evitar ligações com a rebelião do M23 . O tenente Julle Bukamumbe fazia parte destes elementos? Uma coisa é certa, em Agosto de 2016, encontra-se em Kananga. Para os militares e polícias, o momento é crítico uma vez que todos são suspeitos de crueldade e ineficácia. Segundo um responsável local dos serviços de segurança, na altura, os polícias e militares castigavam « crianças » de Kamuina Nsapu, que não estavam armados apenas tinham paus de madeira. Alguns dos polícias e militares, do Grande Cassai, juntam-se às milícias, e estas alianças preocupam as autoridades. Outros agentes locais de outras províncias, e que partilham crenças com os Kamuina Nsapu, têm medo dos « poderes místicos », das armas em madeira e do « baptismo » que é suposto torná-lo invencíveis.

Um dia, uma menina pequena veio com um pau de madeira em forma de espingarda. Ordenou a um militar: dá-me a tua arma ou então mato-te. E o militar entregou-lhe a arma.»
Testemunho de um polícia, Kananga, Janeiro de 2017

Quando a 12 de Agosto de 2016, militaires e polícias são enviados para o ataque a casa de Kamuina Nsapu, para mostrar que sabem conduzir operações.

É preciso que o Presidente da República saiba que ele tem a sua tropa em Kananga. Porque ele pensa que o estamos a enganar.»
Extracto de um vídeo do tenente Julle Bukamumbe, a 12 de Agosto, aquando do ataque sangrento contra o chefe Kamuina Nsapu.

Nos dois vídeo gravados a 12 de Agosto de 2016, no dia da morte de Kamuina Nsapu, cita-se o nome do Presidente Joseph Kabila. Há registo do vídeo do tenente Julle Bukamumbe. Vídeo de outro militar, que se encontra na corte de Kamuina Nsapu. Face ao cadáver, de telemóvel na mão, o militar filma e acusa Jean-Prince Mpandi, isto é Kamuina Nsapu, de ter faltado ao respeito ao chefe de Estado. Nos outros cinco vídeos de irregularidades cometidas pelas forças de segurança, a que a RFI teve acesso em cópia, não existe nenhuma referência ao Presidente Kabila. Este encontrava-se em Kananga três semanas antes da morte do chefe Kamuina Nsapu para inaugurar uma central solar, mas também para recolher informações sobre a crise.

Por que motivo se filmam os militares congolese ?
Motivos, as autoridades contra-atacam

Estamos na aldeia de Mwanza Lomba. Cruzámos hoje milícias. Mostrámos que a força está sempre do lado da lei. Vamos persegui-los até ao infinito. Vamos persegui-los até ao dia em que sejam todos exterminados.»
Extracto do vídeo de um militar congolês, Mwanza Lomba, Cassai-Oriental, 21 de Dezembro de 2016

Massacre de Mwanza Lomba (versão em inglês)

A 18 de Fevereiro de 2017 tem lugar o primeiro sinal de alerta por parte do governo congolês. Nesse dia é publicado nas redes sociais o vídeo intitulado « de Mwamza Lomba ». Os governos americanos e francês reclamam, imediatamente, a abertura de uma investigação. O ministro congolês para a comunicação, Lambert Mendé, denuncia uma « montagem ridícula » e fala « em boatos maliciosos ». Para sustentar a sua tese, produz em francês e inglês um parecer de um perito identificado por « M. K. ». Curiosamente, o documento intitula-se Manipulação de imagens em Tshimbulu.

Comunicado do governo e parecer de um perito, publicado a 20 de Fevereiro de 2017 (versão original)

Não lhe cabe a ele dar provas da inocência das FARDC (…). A tarefa pertence aos acusadores, até aqui desconhecidos, de encontrar provas sobre os factos.»
Comunicado do ministro para a Comunicação Lambert Mendé, 20 de Fevereiro de 2017

Apesar dos desmentidos oficiais, a justiça militar congolesa abre uma investigação. O gabinete das Nações Unidos para os direitos do homem mostra-se disponível para se juntar à investigação. O pedido é aceite a 25 de Fevereiro de 2017, mas na altura de se deslocar ao terreno, a equipa da ONU é afastada. Os documentos da missão terão sido « mal preenchidos ». Os magistrados militares congoleses continuam, desta feita, a trabalhar sozinhos.

A 20 de Fevereiro de 2017, quando o Alto-comissário das Nações Unidas para os direitos do homem, o jordaniano Zeid Ra'ad Al Hussein, reclama o fim dos massacres no Grande Cassai, faz referência ao vídeo de Mwanza Lomba. Os investigadores do gabinete das Nações Unidas para os direitos do homem (BCNUDH ) multiplicam-se as missões no terreno para tentar apurar as alegadas valas comuns. Mas já não estão sozinhos nas investigações. Os capacetes azuis e outras secções da missão da ONU estão envolvidos nas investigações para confirmar abusos. Mas as restrições multiplicam-se e os capacetes azuis dizem terem sido ameaçados por militares congoleses quando tentavam avançar nas investigações para encontras presumíveis valas comuns.

Como é que os militares justificam esta atitude?

À luz dos relatórios dando conta das graves violações e com a mais recente descoberta de três novas valas comuns, peço ao Conselho que crie uma comissão de investigação para examinar estas alegações.»
Extracto do discurso de Zeid Ra'ad Al Hussein, Alto-comissário das Nações Unidas, diante do Conselho de direitos do homem da ONU, a 8 de Março de 2017

Dez dias depois de ter sido lançado o apelo do Alto-comissário, a 18 de Março de 2017, a justiça militar congolesa detém sete suspeitos, todos militares , e descobertas duas valas comuns. Já não se trata de montagem. O auditor general congolês, o general Joseph Ponde, enumera uma longa lista de ligação e acusação: crimes de guerra por assassínio, mutilação, tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, recusa de denunciar abusos cometidos por elementos militares. Mas insiste no contexto, esta guerra assimétrica «imposta » às forças de segurança, e assente no facto de as milícias se atacarem a símbolos de Estado, milícias armadas e que matam. Desta forma, para duas províncias, o magistrado militar enumera a quantidade de armas apreendidas às milícias: cinco armas de fogo, entre elas três AK47, três bombas, uma « quantidade importante » de armas brancas no Cassai-Central e doze espingardas de calibre 12, uma arma AK47 e, igualmente, uma « importante quantidade » de armas brancas no Cassai-Oriental.

Extractos do comunicado da justiça militar em Mwanza Lomba, páginas 4 e 5. (versão original)

Entrevista RFI, 13 de Janeiro 2017 (versão original)

O ministro congolês para os Direitos do homem explica a lentidão das investigações



Neste mês de Março de 2017, as Nações Unidas têm outro assunto preocupante. Desde o dia 12 de Março, a ONU não tem notícias de dois dos seus peritos, Michael J Sharp e Zaida Catalan, e conduz uma grande campanha para os encontrar. Uma vez mais, o governo congolês limita os acessos ao Cassai-Central. O governo diz ser demasiado perigoso deixar entrar e que estrangeiros circulem sem informação prévia, e até mesmo quando estrangeiros circulam numa escolta militar das autoridades. O governo abre uma investigação no próprio dia do desaparecimento de Michael J Sharp e Zaida Catalan. Kinshasa comunicará o rapto antes do New York.

Comunicado do ministro congolês da Comunicação acerca da morte dos dois peritos, a 13 de Março de 2017. (versão original)
Os Kamuina Nsapu, são « terroristas » ?

Até este momento, as autoridades congolesas, raramente, comunicam as perdas da autoria dos Kamuina Nsapu cometidas contra as forças de segurança. Mas, no fim do mês de Março de 2017, a polícia afirma que no fim-de-semana de 23 e 24 de Março, pelo menos 39 polícias foram executados por milícias. Terão caído numa emboscada em Kamuesha, na província do Cassai, entre Tshikapa-Kananga. Antes de serem mortos, terão sido presos em dois camiões cheios de material militar.

Policias capturados por milícias do Kamuina Nsapu (versão em inglês)

O som é dificilmente audível. Mas neste registo, as presumíveis milícias Kamuina Nsapu questionam os polícias, alguns deles encontram-se descalços. Um deles apresenta-se como sendo jornalista e apresenta-se pelo seu nome.



Estou a fazer esta reportagem, sou o Grégoire Muamba wa Tshitala. Confirmo que estas pessoas e os seus bens foram detidos e apreendidos. Somos habitantes da aldeia. Podemos ver o que transportam. Têm utensílios de cozinha, os colchões estão aqui, os seus sacos também. E têm as suas armas»
Extracto de um vídeo de polícias detidos, Kamuesha, 23 ou 24 de Março de 2017

As polícias dizem ter outro vídeo, com a execução destes prisioneiros. A comunidade internacional condena este acto sem possuir mais informações.

Aqui está o general que conduz os soldados. Estes é o patrão dos traidores. É este que é enviado para destruir a aldeia. Aqui está ele. Estas pessoas que veem são enviadas para destruir a aldeia toda e todo o país, na República Democrática do Congo. Olhem para eles. São estes os grandes rebeldes que destroem o país.»
Extracto do vídeo dos polícias detidos em Kamuesha, 23 ou 24 de Março de 2017

O homem que se apresenta como Grégoire Muamba wa Tshitala interroga os polícias. As conversas fazem-se em tshiluba, a língua local. Trata-se de um simples interrogatório sobre a missão levada a cabo pelos polícias. Estes parecem vir de diferentes províncias. Um deles insiste para que os polícias falem em tshiluba. Acusam-nos de serem traidores.

Passado um mês, a 24 de Abril de 2017, o vídeo dos polícias detidos é apresentado à comunicação social pelo porta-voz da polícia e pelo ministro da comunicação. O vídeo é difundido bem como outras duas gravações de ataques atribuídos aos Kamuina Nsapu : um curto vídeo de uma decapitação e um vídeo com a execução dos dois peritos da ONU, desaparecidos desde 12 de Março.

O Presidente da Republica pede (…) ao ministro da Justiça que tome urgentemente medidas, que estejam ao seu alcance, para que o Ministério Público e auditorias competentes possam abrir investigações (onde ainda não estejam a decorrer).»
Gabinete da Presidência da República, 17 de Abril 2017

Para as autoridades congolesas, estes vídeos põem fim ao debate. Os Kamuina Nsapu são apresentados como « terroristas » e como os principais responsáveis das violências no Grande Cassai. A 15 de Maio de 2017, o porta-voz das forças armadas entrega um balanço das operações conduzidas desde o início de Março: 390 elementos das milícias, 39 militares e 85 polícias morreram.

Os nossos homens respeitam o direito internacional e os direito humanos. (…) Operamos de forma profissional.»
Comunicação do porta-vos das forças congolesas, 15 de Maio de 2017

Kinshasa opõe-se a todas as investigações internacionais

Desde o dia 8 de Março de 2017, o Alto-comissário das Nações Unidas apelou a uma investigação internacional, os oficiais « mais conhecidos» das forças congolesas desapareceram pouco a pouco, no decorrer das operações. Nem o coronel François Muhire, nem o tenente Julle Bukamumbe se encontram em Tshimbulu. Em Kananga, o comandante das operações foi substituído. Tudo parece ter sido redistribuído para novos palcos de operações.

O governo multiplica as missões no estrangeiro. Acontecimento raros, o Presidente Kabila desloca-se duas vezes, ao Egipto e ao Gabão, onde decorre uma cimeira da CEEAC. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Léonard She Okitundu, deslocou-se a todo o lado, ao Egipto e ao Gabão, mas também a Angola e à África do Sul (os pesos pesados da SADC), mas também ao Burundi e ao Ruanda (países vizinhos), e ao Sudão do Sul e à RCA. O ministro congolês encontra-se com o chadiano Idriss Deby, o Presidente da Guiné Equatorial Teodoro Obiang Nguema, o guinnense Alpha Condé, o congolês Denis Sassou Nguesso, o argelino Smaïl Chergui, o Comissário para a Paz e Segurança da União Africana, e até mesmo o ministro russo para os Negócios Estrangeiros, Serguei Lavrov. Esta diplomacia « activa » parece dar frutos. Assim, no dia 29 de Maio de 2017, quando a União Europeia sanciona nove personalidades congolesas em seguimento da repressão no Grande Cassai, às 42 valas comuns e aos vídeos bárbaros, as vozes no continente levantam-se, como acontece em Angola.

Segundo diplomatas ocidentais, a Rússia e a China bloqueiam todas as investigações internacionais sobre os massacres. Quanto ao governo congolês, ele mostra-se disposto a aceitar uma investigação conjunta, como já o fizera em relação a outros dossiers. Kinshasa assegura-se da investigação e o apoio da ONU apenas será aceite, como já acontecera no passado, nomeadamente, em 2013 aquando dos massacres de Kitchanga .

Quanto ao Conselho dos direitos do homem da ONU, o seu Alto-comissário aguarda pela criação, no decorrer da sessão de Junho de 2017, de uma comissão de investigação internacional. Na anterior sessão, em Março, os países africanos, entre eles a África do Sul, bloquearam a iniciativa. Independentemente da decisão tomada, em nome da soberania, está fora de questão para o governo congolês aceitar uma investigação internacional para os massacres do Grande Cassai, como para as execuções dos dois peritos da ONU, o americano Michael J Sharp e a sueca Zaida Catalan.



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